O Segredo do Benjamim


Benjamim

BOM DIA!

Foi há cinco ou seis anos, na "sexta-feira santa". Depois de uma celebração que me deixou "azedo" pela ausência de sentido pascal na maneira como se falou da morte de Jesus, cheguei ao quarto e sentei-me à secretária a olhar para a parede. Era um misto de tristeza e arrelia cá por dentro...

Seriam por volta das 4.30 da tarde... De repente, comecei a escrever. Estive sentado a escrever durante horas a fio, largas, sem me levantar. Ao princípio, não fazia a mínima ideia do que ia sair. Não foi pensado! Foi tudo saindo... De repente, apareceu na minha mente um rapazinho chamado Benjamim, contemporâneo de Jesus, que queria falar... Deixei-o falar, sem ter noção de onde me levaria.

Lembro-me bem como vivi tudo isso, como me apanhou por dentro. Experimentei em mim todas as sensações que ia escrevendo como sendo dele... Uma coisa ao mesmo tempo muito bonita e intensa. Não faço ideia do tempo que demorei.

Sei que hoje diria coisas bem diferentes, mas na altura foi muito importante para mim que tenham acontecido deste jeito. No fim, sem me dar conta, tinha escrito algo que me tinha feito passar daquela tristeza a uma profunda Alegria! Sentia-me eu próprio VIVO, INTEIRO, RESSUCITADO!

Desde então, o Benjamim já "falou" com muita gente... Este ano lembrei-me de o trazer aqui ao nosso cantinho. "O Segredo do Benjamim" nasceu assim, numa tarde PASCAL muito bonita para mim...

Nas próximas duas semanas o Benjamim é que vai tomar conta do blog. Eu só trato dos comentários e das musicas. Os desenhos que irão aparecer a encabeçar os posts, foram feitos pelo meu amigo Alexandre Caramez, a "pedido" do Ricardo Ascensão, meu companheiro do blog "a sós com eles". Um grande abraço aos dois!

Quem quiser ter uma breve apresentação do Benjamim, pode relembrar uma outra vez, já em Outubro de 2006, em que ele, assim meio de fugida, apareceu cá pelo blog... clica aqui!


SHALOM

Benjamim 1

1
Ainda me lembro daquela manhã…

Acordei sobressaltado com o movimento que, de repente, se gerou lá em casa. Alguém veio bater à porta trazer a notícia, sem sequer entrar, mas mal se foi embora ficou a casa em rebuliço. Levantei-me, esfreguei os olhos ainda meio ensonados e fui ter com os meus pais. O meu pai já tinha saído, e a minha mãe procurava o véu para pôr à cabeça enquanto avisava a minha irmã para estar atenta quando eu acordasse. Perguntei-lhes o que tinha acontecido, e a minha irmã respondeu-me: “Parece que esta noite prenderam o profeta de Nazaré!”

Eu gelei por dentro. Quando se tem onze anos não é fácil dizerem-nos que os nossos heróis afinal não são todo-poderosos… Eu lembrava-me muito bem dele, quando passava dias lá na minha cidade, em Cafarnaum, anunciando a Boa Nova libertadora de um Deus que é Amor. Algumas vezes estive até com ele, embora o meu tio me repreendesse e mandasse embora dizendo que o Mestre não queria lá crianças.

Mas Jesus sempre o confundia:
- “Pedro, deixa vir o rapaz para aqui! Bem aventurados os que semearem no coração a semente de verdade e confiança que floresce nas crianças, porque esses descobrirão os segredos que tenho para lhes contar…”

E o meu tio Pedro quase sempre ficava com aquela cara de quem não entendia nada do que tinha ouvido. Era também por causa dele que a minha mãe estava preocupada. Afinal, era irmã dele, e se o Mestre tinha sido preso durante a noite, a sorte dos seus discípulos não teria sido muito diferente. E talvez tivesse havido luta… Talvez até tivesse sido morto para defender Jesus… A minha mãe bem sabia o irmão que tinha.

- “Mãe, também quero ir! Quero saber o que aconteceu a Jesus, quero vê-lo!”, disse eu, já esquecido do sono que trazia a pesar nas pálpebras.
Mas a minha mãe não deixou:
- “Uma vez que já acordaste, a tua irmã pode vir comigo, mas tu ficas aqui sossegado. Eu logo te conto… Tu ficas aqui que Jerusalém na altura da Páscoa não é lugar para meninos de onze anos.”
- “Mas, mãe…”
- “Não se fala mais nisso! É perigoso…”

E saíram as duas.

Tínhamos chegado a Jerusalém poucos dias antes, para celebrarmos a Páscoa, como todos os anos. Estávamos numa parte da casa de uns familiares do meu pai, que era de Jerusalém, e eu agora tinha que aguentar até que alguém chegasse e me contasse como estava Jesus, o que lhe tinham feito, e, sobretudo, o que lhe iriam fazer…

Eu bem sabia como os poderosos do meu povo o detestavam. Tantas vezes vi os fariseus e os doutores da Lei no meio das multidões, como camaleões escondidos, escutando Jesus para depois o irem acusar aos sacerdotes do Templo. Bem sabia que à mínima oportunidade eles lhe deitariam as mãos para o calar. Jesus fazia-os tremer porque era livre; e os poderosos não gostam de homens livres, porque a liberdade é mais forte que o poder.

E eu roía-me por dentro na ansiedade de saber o que tinha acontecido nessa noite… “Parece que esta noite prenderam o profeta de Nazaré!...”

E agora?! Onde está?! Como está?! Porquê?!

E os romanos… eu tinha muito medo dos romanos… Eles podiam fazer muito mal a Jesus, até matá-lo se isso lhes conviesse!

Mas eu tinha que esperar que alguém chegasse para me contar…

Tinha?...

Benjamim 2

2
Sabia que a desobediência me ia sair bem cara, mas saí de casa. Ao abrir a porta dei-me conta que várias pessoas corriam na direcção do palácio do governador romano enquanto falavam de Jesus. Meti-me no meio da multidão e fui com eles…

Quando cheguei lá, havia tanta gente que não conseguia ver nada. O coração quase me saltava do peito com tanta coisa junta que estava a sentir. Medo, ansiedade, entusiasmo, expectativa… Eu só queria ver Jesus. Mas mergulhado na multidão ninguém o vê nem o escuta. Comecei a furar, serpenteando entre os corpos pesados que já se tinham aglomerado ali desde cedo, até que, finalmente, consegui sair da multidão e ficar à frente, escondido atrás de uma coluna.

Todo o povo estava no átrio que ficava ao fundo de uma escadaria, no cima da qual estavam guardas romanos e uma cadeira luxuosa. À frente da multidão estavam vários chefes dos fariseus e dos sumo-sacerdotes. Mas não estavam só eles… Olhei por cima das cabeças da multidão, da coluna onde estava, e vi vários fariseus e doutores da Lei que conhecia de Cafarnaum e ali de Jerusalém espalhados no meio do povo. Eu não conseguia perceber o que estavam a preparar, mas reparei que entrecruzavam os olhares permanentemente, como que na iminência de que alguma coisa acontecesse…

De repente, todos se começaram a agitar. Olhei para o topo da escadaria e vi dois guardas a chegar, depois um homem vestido com roupas importantes que se sentou na cadeira e que eu percebi que era o tal governador romano de quem apenas sabia que se chamava Pilatos, e depois…

Só me lembro que mal o vi baixei os olhos de susto e comecei a chorar e a chamar nomes baixinho a quem lhe tinha feito aquilo. Tinham batido em Jesus!


Fez-se entre a multidão um silêncio de espanto, mas logo os fariseus, sacerdotes e levitas o quebraram começando com o seu alarido do costume:

- “Blasfemo, falso profeta, carpinteiro armado em Rabbi, perturbador do povo…”

E a multidão começou a acompanhar estas vaias a Jesus. O costume das multidões…

Limpei as lágrimas e ganhei coragem para levantar os olhos novamente. A túnica de Jesus estava suja de sangue, rasgada nos ombros por golpes de chicote, e o seu rosto estava macerado como nunca tinha visto o de ninguém. Ao olhar para o seu rosto assim, lembrei-me de tantos rostos que vi transformarem-se em Cafarnaum à passagem de Jesus. Quantos sorrisos nasceram em rostos que só conheciam a tristeza, quantos olhares voltaram a brilhar entre as rugas de gente já sem esperança, quantas dores do coração foram aliviadas na escuta da palavra libertadora daquele profeta diferente, quantas angústias escondidas foram saradas pelo olhar benevolente do Mestre que rasgava com os seus passos caminhos novos de alegria, libertação e vida renovada na fé, na esperança e no amor!

Mas havia sempre lá no meio aqueles cujos rostos não se transformavam… porque o que manda no rosto é o coração. E foram esses que o acusaram e o entregaram aos romanos… e fizeram aquilo ao rosto de Jesus…

Apetecia-me correr a escadaria e fazer igual àqueles soldados, libertar as mãos de Jesus das cordas e levá-lo comigo para minha casa em Cafarnaum, onde o protegeria para sempre. Mas…

Mas não consegui fazer mais do que colocar novamente a cabeça entre as mãos e chorar como um menino de onze anos…

Benjamim 3

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De repente, Pilatos levantou-se e a multidão calou-se. Ninguém o amava, ninguém o respeitava, mas todos o temiam… E com um ar trocista disse à multidão:
- “Ouvi dizer, ó judeus, que este é o vosso Rei!”

Eu estava já pronto para saltar de trás da minha coluna e gritar em coro com toda a gente: “Sim, sim, Jesus é o nosso Rei, o Messias que esperávamos!!!”, mas, do meio daquela gente toda de olhos esbugalhados e ideias amarradas, os fariseus começaram a gritar:
- “O nosso rei é César! Viva César!”
E em poucos segundos todos gritavam Vivas a César de punho levantado.

Eu fiquei sem reacção. Sentia que estava a ser mergulhado na maior desilusão da minha vida. Olhei para Jesus, no meio da gritaria, e parecia ser ele o único que estava calmo.

Enquanto os judeus gritavam e os romanos sorriam, Jesus tinha levantado os olhos e pousava o seu olhar sobre a multidão. Eu observava-o… e vi que se detinha a olhar para alguns rostos de maneira especial, como que conversando, enquanto o seu semblante se carregava de uma tristeza atroz. Foram apenas alguns segundos, mas a mim pareceram-me dias…

Depois, com um simples movimento de braços, Pilatos calou a multidão e pôs-se a falar com os chefes religiosos do povo, num julgamento de faz de conta. Jesus voltou a baixar os olhos, fixando-os na roda de sangue que tinha já em torno dos seus pés.

Então, eu olhei melhor para os rostos da multidão e percebi o porquê dos olhares tristes de Jesus. Reconheci tantas caras… Tantos no meio da multidão tinham seguido Jesus durante dias, escutando-o e deixando-se libertar por ele. Vi muitos vizinhos e conhecidos de Cafarnaum que conviveram com Jesus nas suas idas à cidade, e que no calor das suas pregações o chamaram de Profeta, Messias, filho de David, Rei de Israel… tantas coisas…

E no dia anterior? Todos esses e muitos mais tinham recebido Jesus com palmas, danças e aclamações de festa quando ele estava a entrar em Jerusalém. Eu estava no átrio do Templo e dei-me conta da algazarra. Corri e vi o corredor que se abria diante de Jesus e do jumentinho em que vinha sentado. Eu vi! Todos cantavam, todos aclamavam: “Bendito o que vem em nome de Deus! Bendito o filho de David que vem a nós!”. Todos, em multidão… como agora…

Tantos rostos que agora via ranger os dentes contra Jesus eu tinha visto no dia anterior a aclamá-lo… E continuava a correr os olhos pelos rostos da multidão, encontrando tantas histórias, tantos encontros, tantos olhares familiares…

Benjamim 4

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E, de repente, num canto quase tão escondido como o meu, vi o meu tio Pedro. Como era possível ele estar ali escondido? Eu só tinha onze anos, mas o meu tio era forte e corajoso! Admirava-o pelo seu entusiasmo… porque estaria ele a esconder-se? Era impossível o meu tio ter medo! Além disso, ele amava Jesus com todo o seu coração. Porque não gritava, ao menos, como faziam os fariseus entre o povo? Talvez conseguisse criar o efeito contrário.

E até havia por lá outros discípulos de Jesus, como o meu tio, mas todos separados, escondidos e mudos de um "não sei quê" que eu não queria acreditar que fosse medo. Porque é que eles não se juntavam todos e tentavam recordar aos que ali estavam o que tinham cantado e proclamado no dia anterior?

Já não conseguia entender nada de nada! Só sabia que se os adultos pensassem como as crianças, tudo seria mais simples.

Entretanto, a conversa entre Pilatos e os chefes do povo continuava, sem ninguém se preocupar sequer em ouvir o que Jesus teria a dizer, e eu desci da coluna onde estava para ir ter com o meu tio. Alguma coisa tínhamos que fazer. Com ele ao meu lado eu não tinha medo de ir lá acima e libertar Jesus!

Pus-me de novo a furar entre a multidão e senti-lhe o peso como nunca. Todos se apertam, sufocam, empurram, mas estão de costas voltadas uns para os outros. Ninguém se olha nos olhos, ninguém dialoga, ninguém opta… Todos seguem e são empurrados sem sequer perguntar porquê, para quê e por quem…


Benjamim 5

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Quando finalmente cheguei junto do meu tio abracei-me à cintura dele procurando a segurança que o meu coração precisava naquele momento. Mas ele deu um salto e ficou com um rosto ainda mais assustado que o meu. Ao ver-me, baixou-se para mim, e perguntou-me quase ofegante:
- “Que fazes aqui, Benjamim?”
- “Vim ver Jesus, tio. Por causa das mentiras dos nossos chefes os romanos bateram-lhe. Faz alguma coisa!”, e comecei novamente a chorar.

O meu tio abraçou-me forte, também ele com lágrimas nos olhos, e pediu-me por favor que falasse baixo para não chamar a atenção. Nunca tinha visto o meu tio chorar, mas o que me custava mesmo a entender era que ele estivesse com medo.

- “Tio, temos que dizer a verdade sobre Jesus. Eles estão todos a mentir! Nós sabemos a verdade, nós conhecemos Jesus; nós bem vimos lá em Cafarnaum como a primavera despontava nos corações daqueles que com ele se encontravam. Nós somos testemunhas dos sorrisos que nasceram nas vidas de tantos dos nossos amigos que antes viviam esmagados sob pesos e problemas dos quais Jesus os libertou. Tu bem o ouviste dizer palavras de Vida Nova que transformavam os corações disponíveis. Tu bem sabes como ele me acolhia, me sentava no colo, conversava e brincava comigo, mesmo quando tu me repreendias por eu andar sempre a furar no meio da multidão para o ver e ouvi-lo chamar-me. Ó tio, tu deixaste Cafarnaum para o seguires por onde ele fosse. Mesmo quando ele despedia as multidões para ficar só, tu permanecias com ele. Escutaste dos seus lábios os segredos mais profundos do seu coração. Porque te calas agora?”

E o meu tio ficou em silêncio…

Parecia que, num momento, toda a multidão tinha desaparecido e restávamos nós os dois, sozinhos, ao fundo de uma escadaria que precisávamos de subir para libertar Jesus. Então, olhou-me como nunca tinha feito antes, num misto de medo e tristeza, e disse-me com a voz entrecortada:

- “Benjamim, és tão novo… Para ti é tudo tão fácil… basta seguires o coração. Quando cresceres vais ver que o coração falará mais baixo e tantas outras vozes te gritarão aos ouvidos. Eu amo Jesus! Bem o sabes. Não podes imaginar como me dói vê-lo ali assim maltratado. Não poderás nunca imaginar como me despedaçou por dentro quando há pouco o seu olhar pousou sobre mim… Eu amo-o, mas já não é possível segui-lo e já não vale a pena lutar por ele. Ele não é quem nós esperávamos… Fez-nos acreditar que era o Messias, o Esperado de Israel, o Ungido de Deus para libertar e reunificar o reino do nosso pai David. Quando às vezes nos entusiasmávamos mais, ele abrandava-nos os ânimos e mostrava-nos que queria ser um Messias diferente do que esperávamos. E nós íamos percebendo que ele estava à espera do momento certo…

Houve momentos de impaciência e entusiasmo… Até que ontem, naquela entrada triunfante que fizemos em Jerusalém vimos o sinal claro de que tudo estava pronto! Depois, Jesus entrou no átrio do templo e purificou-o à vergastada e chicotada, diante de todo o povo, sob os narizes empinados dos sumo-sacerdotes e dos doutores da Lei. O povo intimamente rejubila… Nós intimamente esperamos… ‘É agora’, vamos sussurrando uns aos outros enquanto seguíamos Jesus ao fim do dia…

Durante a noite tudo se precipitou! O Judas, desta vez não conteve a impaciência e foi buscar os principais rivais de Jesus, que o queriam prender. Todos sabíamos que era o momento certo da libertação do povo liderada pelo Messias, e estávamos certos de que Jesus também o sentia. Mal eles chegaram, reagimos. Eu fui o primeiro a puxar da espada e a ferir um centurião romano. Estava pronto! Mas Jesus… mandou-me parar, curou-o, mandou-me guardar a espada, e entregou-se sem resistir nem lutar. Todos, de espada na mão, ficámos paralisados. O que estava ele a fazer?! O Messias tinha que lutar! A espada mataria em nome de Deus e daria a vitória da liberdade ao seu povo, como tinha feito David. Mas Jesus entregou-se como qualquer um…

Durante três anos o seguimos na certeza de que era o Messias… Agora, calados e amedrontados entre a multidão, vemo-lo o mais maltratado dos homens, às mãos de soldados romanos e chefes mentirosos a quem ele tantas vezes chamou hipócritas. Como qualquer um… Benjamim, olha para ele! Olha-o, e diz-me se pode ser ele o Messias dos judeus…”

Não precisei de olhar. Sem me mover, respondi ao meu tio:

- “Talvez não seja o Messias dos judeus, mas não duvido de que é o Messias de Deus! Não é o Messias que os fariseus e os doutores da Lei esperavam; por isso lhe estão a fazer isto. Mas, quanto a ti… Pensei que estivesses mais atento aos sinais que Deus te deu através dele do que às tradições que tens na cabeça de que o Messias havia de ser como tu o esperavas. Agora percebo porque é que a minha mãe me contou que o Mestre uma vez te tinha chamado ‘Satanás’ e te tinha dito que tu só conseguias ver com os olhos dos homens e não com os olhos de Deus… e continuas.”

O meu tio apertou-me os braços com força:
- “Cala-te Benjamim! Cala-te; não passas de uma criança! Eu amo-o. É a pessoa mais especial que já conheci na vida. Não estou arrependido de o ter seguido estes três anos. Não estou arrependido, mesmo não sendo o Messias. Mas estou desiludido. O meu coração sente-se traído…”

Baixei os olhos.

A verdade é que eu também não percebia o que estava a acontecer…



Benjamim 6


6

O silêncio triste em que estava mergulhado foi de repente quebrado por uma pergunta mordaz do governador:
- “E agora, que hei-de eu fazer ao vosso fora da Lei?”

Fora da Lei… esta frase soube-me a fel. Na catequese da sinagoga eu bem aprendia o que era a Lei: um conjunto pesado de normas, preceitos e proibições que sufocavam as nossas vidas e nos colocava todos os dias sob o olhar minucioso de um deus que nos metia medo porque, na verdade, era um deus apaixonado pela sua Lei, não por nós.

Jesus não era um fora da Lei! Eu conhecera-o e escutara-o em Cafarnaum. Jesus era o profeta de um Deus sem Lei, sem imposições nem castigos. Um Deus cuja vontade se propõe, não se impõe, porque é Amor. Um Deus em nome do qual não se pode dizer: “Faz isto! Estás proibido de fazer aquilo…”, mas antes: “Feliz és tu se acolheres esta proposta… bem aventurados os que caminham pelos caminhos de Vida Nova que se rasgam nos corações que se deixam encontrar pelo rosto benevolente de Deus!”

Mas parece que ninguém estava disponível a perceber isto… Sobretudo os que se alimentavam à custa da imposição da Lei e com ela justificavam todas as suas injustiças e opressões. De repente, os fariseus que estavam no meio da multidão começaram a gritar:
- “É réu de morte! Crucifica-o! Anda a desviar o povo da sua Lei e a revoltá-lo contra César. Crucifica-o!”

E, em segundos, a multidão gritava em coro: “Crucifica-o! Crucifica-o!” com o mesmo entusiasmo com que no dia anterior gritara: “Hossana! Hossana! Bendito o que vem…”

O meu tio Pedro ficou como uma estátua, de olhar pregado em Jesus, e dos seus lábios desprendiam-se quase inaudíveis palavras:
- “Não… a cruz, não! Por favor, crucificá-lo, não…”

Começou a chorar como uma criança e saiu dali a correr, sem sequer se preocupar em deixar-me sozinho. Vi-o desaparecer no meio do povo, e senti medo. Estava sozinho no meio de uma multidão de cegos e duros de coração, e nem conseguia chorar, nem mexer-me, nem queixar-me… A certeza de que iam matar Jesus paralisava-me todos os movimentos. E novamente com um só gesto, Pilatos silenciou a multidão.

Nesse momento, Jesus levantou outra vez a cabeça e olhou os rostos incontáveis que tinha ao fundo da escadaria. De um salto subi para cima do rebordo de uma coluna onde ele me pudesse ver. Com o salto chamei-lhe a atenção, e ele conheceu-me. Senti-o! Não sorriu, não falou, mas deteve os olhos nos meus e amou-me por dentro. Eu sei; senti-o! E eu, mal encarei de frente o seu rosto, recomecei a soluçar porque nunca o tinha visto tão triste. Mas não deixei de o fixar nos olhos. Queria dizer-lhe com o olhar que eu era mais forte que o meu tio Pedro, que eu não tinha ido embora nem estava desiludido com ele. Estava desiludido com os seus discípulos, com o meu povo e com os meus chefes. Esses sim, tinham-me desiludido, mas não Jesus. Queria dizer-lhe com o olhar que o amava, e que se eu fosse grande seria o mais corajoso e fiel dos seus discípulos, o primeiro a dar a vida, o último a abandoná-lo. Queria que ele entendesse que eu gostava de ser muito forte para derrotar a multidão, matar os soldados e levá-lo para minha casa onde lhe trataria das feridas.

E sei que ele entendeu. Foi longo o nosso olhar, e foi profundo o nosso encontro.

Até que a voz podre da injustiça falou mais alto:
- “Seja crucificado!”

E os soldados empurraram Jesus para o interior do átrio do palácio do governador romano, ao som do alarido vazio da multidão e dos risos envenenados dos sumo-sacerdotes, fariseus e doutores da Lei.

Benjamim 7

7

Do outro lado do palácio abria-se uma porta para o caminho que conduzia os condenados até ao lugar da crucifixão: o Gólgota. Todo o povo se começou a dirigir para lá, à espera…

Eu corri também a dar a volta ao palácio e, no caminho, vi o meu tio a entrar apressado para um beco. Segui-o, e quando o alcancei estava ele sentado no chão de uma viela apertada sem saída, abraçado aos joelhos e a chorar compulsivamente.

- “Tio, vão matá-lo! Já estão todos a dirigir-se para a porta dos condenados. Estão quase a matá-lo… Onde está o discípulo de Jesus que lhe prometeu fidelidade até à morte?”

E o meu tio quase nem reagiu. Não retirou a cabeça de entre os joelhos e disse-me com voz de criança:
- “Benjamim, tenho medo. Tenho muito medo. Não sei o que é maior, se a desilusão, a tristeza ou o medo. Tenho muito medo, e tenho vergonha. Não sei qual é o segredo da força verdadeira, não sei qual é o segredo da fidelidade incondicional e do seguimento corajoso. Só sei que não o tenho comigo… Benjamim, perdoa-me. Perdoa-me desiludir-te também a ti, mas tenho medo. E vergonha… Queria morrer com ele para não ter que me lembrar deste momento a vida toda, mas nem para isso tenho coragem. Não percebo nada… Não consigo ver mais nada… Eu neguei-o. Eu amo-o, e neguei-o. Não o entendo, não me entendo, não entendo esta morte…”

Eu não sabia o que fazer. Mas não conseguia ficar ali! Dei um beijo na cabeça do meu tio e corri novamente em direcção à porta por onde Jesus sairia…



Benjamim 8

8


Quando cheguei, todos se aglomeravam ao longo das duas bermas do caminho, criando um verdadeiro corredor da morte para aquele que tinha aberto aos corações acolhedores caminhos de vida.

Passado um pouco, a grande porta abriu-se, e vi saírem alguns guardas romanos. Depois, um primeiro condenado, já com a trave de madeira sobre os ombros. Era muito mais jovem que Jesus, e não me parecia ser capaz de fazer nada que merecesse tal morte. Tinha um olhar assustado e um rosto amedrontado. Foi fácil descobrir nos seus olhos um fundo de ternura e de verdade, e nos seus passos vacilantes a certeza de que no meio daquele espectáculo mortal não era ele o criminoso… Só Deus sabe porque teria ido acabar os seus dias naquela procissão.

Atrás dele vinha outro, já não tão jovem, talvez da idade de Jesus, mas com um semblante envelhecido pelo jeito como olhava. Tinha rancor no olhar e fixava as pessoas por quem passava de um modo que as assustava, mesmo preso e sob a trave horizontal que haveria de completar a sua cruz.

E, por fim, Jesus. Doeu-me por dentro vê-lo assim, com a trave de madeira a magoá-lo nas feridas já abertas pelo chicote. Caminhava com maior dificuldade que qualquer um dos outros, mas também era o único que deixava atrás de si um rasto de sangue. Não fitava ninguém. Sob o peso da trave, olhava apenas o chão que marcava com os passos. Nunca o tinha visto tão triste. Cheguei-me mais ao caminho, furei entre os soldados e chamei-o quase ao seu lado:
- “Jesus! Jesus!”

Ele olhou-me, sem deter os passos, e disse o meu nome devagar:
- “Benjamim; amigo…”

Sorri de contente, mas logo uma mão me agarrou a atirou para trás da escolta, caindo na berma.


Benjamim 9

9

Deixei-me ficar para trás, e vi um grupo de mulheres que chorava. Conheci uma delas, e fui falar-lhe:
- “Tu não estiveste em Cafarnaum com Jesus? Não és Maria de Magdala?”

E ela, abraçada a uma outra mulher que chorava ainda mais, disse-me que sim com a cabeça.
- “E ela, quem é?”, perguntei eu, apontando…

Maria respondeu:
- “É a mãe de Jesus…”

Senti pena dela. Jesus era meu amigo. Como se sentiria uma mãe? Não tive coragem de lhe dizer nada… Perguntei antes a Maria de Magdala:
- “Achas que os discípulos dele ainda podem fazer alguma coisa?”

- “Com esses não contes”, respondeu. “Fugiram todos! Se eu fosse homem, eu teria sido o mais fiel dos seus discípulos. Mas que pode uma mulher fazer por um condenado à morte? Choro. Choro a morte injusta do homem que me fez renascer para a vida, que me libertou do que me mantinha escrava de mim própria e me fez saborear o lado de dentro da vida, onde o amor pode existir e ser verdadeiro, onde cada dia que passa não é uma maldição que se renova, onde a possibilidade de ser feliz está ao alcance da minha mão…”

- “Eu também gosto de Jesus”, disse-lhe eu. “E ele gosta muito de mim. Ainda há pouco, viu-me e disse o meu nome, e chamou-me amigo”.

Maria perguntou-me:
- “Como te chamas?”

- “Benjamim!”

- “Benjamim?! Jesus já nos falou de ti algumas vezes…”

- “Sim?!”, reagi eu admirado… “E o que disse?”

- “Falava-nos de ti quando nos queria contar algum segredo do Coração. Começava sempre assim: ‘Eu tenho um amigo em Cafarnaum que se chama Benjamim… é uma criança… tem os olhos grandes, vivos e brilhantes, sempre atentos às belezas simples e aos pormenores escondidos. Tem um Coração puro, sempre disposto a alegrar-se com os que se alegram e revoltar-se com os que são injustiçados. Tem uma coragem sincera, sempre a postos para levantar a voz a favor dos amigos maltratados. Tem um riso lindo, que vibra de entusiasmo com cada descoberta e novidade imprevista. Eu tenho um amigo chamado Benjamim que gosta de me escutar sem nunca me pôr em causa, sem nunca me julgar, nem esperar que a minha palavra coincida com as suas expectativas. Bem aventurados os que aprenderem a ver, amar e escutar como o meu amigo Benjamim!’
E dizia-nos muitas outras coisas a teu respeito. Ele gosta muito de ti…”

Eu não cabia em mim! Jesus amava-me mais do que eu podia imaginar. Agora, mais ainda me doía a sua morte. Não podia ser… Agradeci a Maria de Magdala o que me tinha contado, fiz uma carícia no rosto da mãe de Jesus, e corri novamente para a frente. Tive que ir furando novamente a multidão que seguia em procissão atrás dos condenados, e só consegui chegar junto de Jesus quando já estava no Gólgota.

Benjamim 10

10


Estavam já espetados no chão os três postes verticais que esperavam os condenados. Cada um diante do seu poste, foram atirados para o chão, de barriga para cima e braços abertos ainda amarrados à trave que já traziam aos ombros desde a cidade. Chegara a hora mais dolorosa da vida daqueles três homens. Os seus pulsos iriam ser pregados na madeira, e depois iriam ser assim suspensos ao alto, suportando o peso do corpo no lugar dos cravos. Uma vez levantados, ser-lhes-iam pregados também os pés, e assim ficariam. Até à morte…

Os soldados deixaram Jesus no chão, e dirigiram-se para um dos condenados, para dar início à crucifixão. Era já um ritual sabido de cor: desamarrá-lo da trave, despi-lo, pregá-lo e içá-lo. Pareciam já imunes aos gritos de dor e à visão do sangue a brotar das chagas.

O primeiro condenado a ser vítima deste ritual foi o tal com o olhar cheio de ódio e rosto assustador. Enquanto do seu rosto desaparecia o ódio para dar lugar ao medo e à dor, era a minha oportunidade de estar com Jesus. Estava ali sozinho, no chão, à espera… Quanto aos soldados, mesmo que me vissem com ele, o máximo que me fariam seria afastar-me com algum pontapé, mas não fariam muito mais que isso, porque eu era uma criança.

Corri apenas uns segundos e alcancei Jesus. Sentei-me no chão ao seu lado, encostado ao seu peito. No meio das suas dores e da sua tristeza, Jesus ainda sorriu ao ver-me, e falou-me:
- “Meu amigo Benjamim, fiel até ao último momento!”

- “Jesus, se eu fosse grande matava estes romanos todos e levava-te comigo para casa!”

Mas ele sossegou-me…
- “Benjamim, não é matando que transformamos; é vivendo de outra maneira. Nunca sonhei matar em nome da verdade; mas arrisquei-me a morrer em seu nome. E está quase…”

- “Jesus, o meu tio está desiludido contigo porque tu te recusaste a lutar. Para ele, e para os outros todos, teres chegado a este estado é a prova de que não és o Messias que eles esperavam. Por favor, Mestre, explica-me o que te vai no coração!”

- “Benjamim, tu ainda tens os olhos claros. Os que te rodeiam têm todos escamas nos olhos que lhes impedem ver as coisas tal como são. Querem que tudo seja como esperavam que fosse, e não compreendem que a acção de Deus é sempre desconcertante. Não compreendem que o dedo de Deus chega sempre mais longe que os olhares dos homens, que a Palavra de Deus tem sempre um horizonte mais largo que as esperanças humanas. Como lhes custa deixar que Deus seja Deus! Como lhes custa um Deus maior que a Lei, maior que as imposições e prescrições da tradição, alheio aos sacrifícios e holocaustos nos quais põem todo o esforço de conversão. Como se as transformações importantes na vida acontecessem a partir de fora… Como lhes custa, Benjamim, acolherem-me como tu...”

Benjamim 11

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Enquanto íamos falando, ouvíamos os gritos de dor daquele que estava já a ser pregado e preparado para ser içado. Enquanto falava comigo, Jesus ia fechando os olhos a cada grito, mas não parava de me falar, como se eu fosse o mais importante para si naquele momento. De repente, deitei a minha cabeça sobre o peito de Jesus, esquecido do suor e do sangue, e comecei a chorar com os braços a rodear-lhe o tronco:
- “Jesus, por favor, não morras…”

Jesus, sem se poder mexer por ter os braços amarrados, começou a falar-me. Com o ouvido encostado ao seu peito, sentia que todas as suas palavras brotavam directas do coração, como a água fresca goteja da nascente:
- “Benjamim, acredito na Vida! Sei que o amor não se pode calar e a verdade não se submete aos pés de uma cruz. Estou a momentos da morte, mas não consigo deixar de acreditar na Vida! Porque não duvido da fidelidade do Deus da Vida. Vou-te contar um segredo: a verdade é que já não percebo nada… Não percebo esta morte, não percebo estas injustiças… Sei que não fiz nada para a merecer, sei que não é vontade de Deus, e mesmo assim estou a breves momentos dela… Sei que o amor de Deus jamais me empurraria para isto. Sei que foi em seu nome que vivi, falei, libertei, curei, denunciei…

Não houve um passo na minha vida que não rasgasse caminhos novos da presença de Deus entre vós. Não houve uma palavra da minha boca que não revelasse a beleza escondida do rosto de Deus. Não houve um gesto da minha vida que não fosse expressão do encontro transformador de Deus com os corações atribulados.

E fui sentindo que muitas vezes esperavam de mim o que eu não era. Fui sentindo que muitos exigiam de mim o que Deus jamais me havia inspirado. Fui sentindo que aqueles que andavam sempre com a Lei de Deus na boca me perseguiam, julgavam e condenavam em nome dessa Lei. Porque, na verdade, a única coisa que eles conhecem é a Lei, não Deus. Diante desses peritos de uma Lei sem Deus, eu proclamei com todas as ganas do coração um Deus sem leis. E eles não gostaram…

Ontem tive a certeza absoluta de que o desenlace mortal desta aventura estava por horas… Tinha que decidir rápido. Fui para o Jardim das Oliveiras, à noitinha, com o teu tio, Tiago e João, porque me sentia muito só e triste. Mas não foram capazes de me acompanhar… Ainda estavam tão longe do meu coração que não entendiam nada do que estava a acontecer. Tinham os olhos tão cheios com o sucesso da manhã, quando entrámos na cidade, que não se apercebiam de que eu não os tinha preparado durante três anos para o que eles agora queriam que acontecesse. Então, fiquei só. Estava num beco sem saída. Tinha levado a paixão da minha vida longe demais, e já não podia voltar atrás. Ou deixava de ser quem era, anunciar o que amava, viver o que me animava, ou me matavam…

E eu amo a vida, Benjamim! Eu não queria morrer… Chorei, bati com os punhos no chão, enrolei-me sobre mim próprio como uma criança desesperada… Mas estavam em causa duas mortes. Ou me matava, ou me matavam! Sim, porque deixar de viver, anunciar, amar e agir como fazia não seria mais do que morrer…

No cume do desespero gritei com Deus: "Não! Não, Bom Deus, tem que haver outra saída… Pai, por favor…". Mas não havia. Não estava entre a espada e a parede; estava entre duas espadas. Passadas horas de solidão, sofrimento, desespero, oração… tudo começou a ficar mais claro. O Espírito da Paz começou a serenar o meu coração e eu compreendi que era altura de levantar a cabeça. Comecei a sentir-me mais forte e livre que nunca!

E dos meus lábios já não brotava o medo… "Bom Pai, ainda que me matem, não recuarei na Palavra que anuncio e na Vida que vivo em Teu nome! Ainda que me matem, não deixarás de contar comigo para proclamar a fidelidade ao Amor até às últimas consequências! Nas veredas que vamos abrindo na Vida, andar para trás, nem para ganhar balanço…"

Benjamim, no caminho da Fidelidade semeei a semente da Liberdade. Quando lhe colhi o fruto, tive nas mãos a espiga madura da Fortaleza. Fiel para ser Livre, Livre para ser Forte! Cada vez estava mais pacificado: "Prefiro morrer assim do que viver de outra maneira!"

Passado pouco tempo chegaram os soldados que me prenderam, liderados por Judas. Pobre Judas, como se desiludiu quando se deu conta de que eu não reagi aos soldados nem instiguei ninguém à revolução… Era esse o seu sonho desde jovem. E quis-me obrigar a ser o Messias que ele tinha na cabeça. Eu sei que ele me amava profundamente, e por isso tenho a certeza que agora está mergulhado num abismo de tristeza. Espero que não faça nenhuma asneira… ele é tão impaciente…”

Benjamim 12

12

Quando Jesus se calou, reparei que os soldados estavam já a preparar o outro condenado, o jovem de rosto doce e olhar assustado. Doía-me por dentro ouvi-lo gritar…

Entretanto, vi que junto ao poste que iria ser de Jesus estava uma placa de madeira com o motivo da condenação. Dizia: “Jesus de Nazaré, Rei dos Judeus”. De um salto levantei-me, peguei nela, numa pedra afiada, e vim de novo para junto de Jesus. Aquela tábua ficaria pregada sobre a cabeça de Jesus para que fosse vista por quem passasse.

- “Jesus”, disse eu, “eis o que toda a gente vai ler de ti. Mas este é apenas o lado visível da cruz. Diz-me o que queres que escreva na parte de trás da tábua… Esse será o nosso segredo… Será o lado escondido da tua cruz, que só conhecerão aqueles a quem nós o revelarmos…”

Jesus olhou-me, sorriu-me, e disse baixinho:
- “O AMOR VENCEU! Escreve isso: O Amor venceu…”

Rapidamente eu risquei na tábua o nosso segredo com a ponta afiada da pedra e depois li:
- “O Amor venceu…”

Voltei a pousar a tábua onde estava e vi que o segundo condenado já estava a ser levantado por cordas para ser fixado no poste vertical. Tínhamos pouco tempo.
- “Jesus, explica-me melhor o nosso segredo…”

- “Benjamim, sei que Deus é Amor, e o Amor é Fiel. Por isso, confio! Entrego-me sem seguranças, sem garantias, sem dar nenhuma espreitadela ao outro lado da morte… Sei que Deus é Fiel e isso tem que me bastar. Sei que a Palavra definitiva da minha vida repousa ainda nos Seus lábios. Sei que no frente a frente com a morte só o Amor é capaz de ombrear sem lutar para perder. Tenho a certeza absoluta de que o Amor é uma causa válida para viver e, por isso, é também uma causa válida para morrer. Sei que o Amor vence sempre, porque é mais forte que a mentira, o pecado e a injustiça. Sei que o Amor vence até a morte, porque Deus é Amor!

Este é o nosso segredo, Benjamim. Este é o segredo que eu te envio a revelar aos corações disponíveis: a minha cruz tem uma face escondida… Por trás da tábua que toda a gente vê está o segredo que só alguns conhecem: o Amor venceu!”

Mal Jesus disse isto, vi os soldados começarem a dirigir-se para nós. Os outros dois condenados estavam já crucificados. Era a vez de Jesus. Abracei-me a ele com toda a minha força, colei-me ao seu peito na certeza de que nem uma legião seria capaz de me desprender dele. E ia-lhe dizendo:
- “Jesus, amo-te. Amo-te tanto, Jesus… Por favor, não morras… Amo-te, Jesus; não morras…”

Até que mãos brutas me levantaram acima do chão e me atiraram uns metros abaixo de onde estava. Fizeram como que um círculo em torno de Jesus, e um deles ficou de olho em mim para não me voltar a aproximar.

Benjamim 13

13

Passados poucos minutos ouvi o som metálico de uma martelada e um grito de dor tão lancinante que julguei que eu próprio não aguentava. E outra martelada, e novo grito… e outro… e outro… e do outro lado… E eu chorava como nunca.

Os gritos de Jesus penetravam-me por todos os poros do corpo e parecia que quase me matavam a mim. Ele nunca tinha feito gritar ninguém… Porque lhe faziam isto?!

Amarraram cordas compridas à trave em que Jesus já estava pregado pelos pulsos e, passando-os pelo topo do poste vertical, começaram a levantar Jesus. Jesus gritava ainda mais a cada esticão que davam. Todo o peso do seu corpo doía nos pulsos cravados. Eu estava incapaz de qualquer reacção. Há momentos em que o nosso corpo fica impotente… Quando chegou a meio do poste, fixaram-no, largaram as cordas e voltaram a pegar no martelo e nos cravos. Pregaram-lhe os pés ao poste, sem sequer se darem conta dos seus gritos ou repararem no sangue que lhes manchava as mãos. E depois pegaram na tábua com o motivo da condenação, que estava no chão, e deram-na a um que ainda estava no cimo de uma escada, que a pregou acima da cabeça de Jesus. E ninguém reparou no nosso segredo… Ninguém reparou que aquela cruz era diferente, tinha um lado escondido para ser revelado apenas aos corações atentos e disponíveis…

E, num momento, parece que o mundo ficou mergulhado numa redoma de silêncio. Acabaram-se as marteladas, os gritos, a confusão… A multidão começou a dispersar-se, a maior parte dos soldados foi embora levando consigo os seus instrumentos de morte. Apenas ficaram alguns para impedir que alguém se aproximasse das cruzes.

Jesus fechara os olhos. Pendia-lhe a cabeça, mas sabia que não estava morto porque via o seu peito a respirar com dificuldade e ouvia-o gemer. O pior já tinha passado. Agora era só esperar…

Três condenados crucificados, um grupo de soldados, e eu, frente a frente com Jesus, esperando que ele abrisse os olhos a qualquer momento para que visse que eu ainda não me tinha ido embora. Passado um pouco, abriu um bocadinho os olhos, o suficiente para me ver, e num esforço atroz sussurrou-me do alto da cruz:
- “Fiel até ao fim, Benjamim! Mas não esperes mais… vai contar o nosso segredo ao teu tio Pedro. Diz-lhe para se reunirem os meus outra vez, e conta-lhes o nosso segredo. Eles compreenderão… Deus lhes dará a Luz para compreenderem, a Força para acreditarem e a Fidelidade para continuarem a seguir-me. Vai, Benjamim!”

Quando acabou de sussurrar isto, o peito de Jesus começou a agitar-se muito, parecia que sufocava, e depois de um gemido mais forte…

Eu já não tinha mais lágrimas para chorar. Além disso, pressentia que, afinal, nada terminara ali. A cruz de Jesus tinha uma face escondida, e eu tinha recebido da sua boca a missão de revelar o seu segredo.

Voltei para casa, devagar, passando mil vezes na minha cabeça as imagens daquela manhã, chutando as pedras do caminho ainda marcado pelo rasto de sangue que Jesus deixara atrás de si.

Mas levava comigo o meu segredo…

Benjamim 14

14



Hoje, passados quase quarenta anos desde essa manhã, tudo tem para mim um significado novo.

Desde esse dia que vivo em função do meu segredo. Anunciei-o, testemunhei-o, proclamei-o nas praças e celebrei-o nas catacumbas. Vivo num Império em que ser cristão é crime. Em nome do meu segredo já fui preso, torturado, insultado… até que vim parar aqui. Estou nas masmorras do Coliseu de Roma à espera que se abram as portas e me mandem ir para o centro da arena onde me espera a morte nas mandíbulas de leões ou na ponta da espada de gladiadores armados até aos dentes que se colocam diante de nós, que não temos mais que a túnica do corpo. Em nome do meu segredo, vim parar aqui.

Três dias depois daquela manhã os discípulos de Jesus estavam todos reunidos, como eu tinha pedido em nome do Mestre. Mas tremiam de medo das autoridades judaicas e ainda estavam dominados pela desilusão da morte de Jesus. Mas, sem que ninguém percebesse muito bem o que tinha acontecido, eles saíram a meio da manhã para a praça pública gritando como ébrios:
- “Ele está vivo! O Amor venceu! Ele está vivo!”

Quando eu ouvi o alarido e corri ao encontro deles, o meu tio pegou-me ao colo, fez-me rodopiar no ar, e com uma alegria nunca vista dizia-me:
- “Tinhas razão, Benjamim! O Amor venceu! Jesus está vivo! Era esse o segredo… a morte não mata a Vida, apenas a transforma! Ele está vivo, ele está aqui!”

E, nesse dia, todos renasceram. Juntos relembraram tudo o que Jesus lhes tinha dito nas horas de intimidade, e à luz do nosso segredo perceberam o verdadeiro alcance e profundidade de todos os seus gestos e palavras.

Desde esse dia todos descobriram que valia a pena viver em função do anúncio e do testemunho deste segredo. E o que é válido para viver, também é válido para morrer! Por isso, desde esse dia muitos têm morrido por proclamarem o segredo da Vida.

O meu tio, que eu naquela manhã vi chorar de medo como uma criança desesperada, depois de descobrir o segredo escondido da cruz de Jesus ia anunciá-lo para o átrio do Templo de Jerusalém diante dos mesmos fariseus e sacerdotes que tinham levado o Mestre à cruz. Mais que uma vez o levaram ao Sinédrio para o amedrontar, e várias vezes o chicotearam e proibiram de proclamar o segredo da cruz de Jesus. Mas ele, animado por uma Força Nova, saía do Sinédrio com as costas marcadas e ia outra vez para o Templo anunciar o segredo da Vida.

E foi há pouco mais de um ano que ele veio parar aqui a Roma, a estas mesmas masmorras em que estou eu agora, e foi morto. Agora é a minha vez. Não vou poder anunciar mais o segredo que deu sentido à minha vida. Por isso o quis escrever.

Para que os corações generosos se apaixonem pelo lado escondido da cruz de Jesus e vivam até à loucura da morte se for preciso para o testemunhar.

Para que os olhos atentos se cravem no segredo oculto daquela tábua sobre a sua cabeça e chorem de alegria ao fazer a experiência de um amor sem limites.

Para que as vidas dos homens ganhem um sentido de plenitude, floresça nos seus corações a felicidade sem máscaras e a força dos profetas.

Porque Jesus não passou pela morte como um sobrevivente mas sim como um dador de Vida!

E quando, daqui a pouco, a grade da masmorra se abrir e eu for encontrar-me com a morte na arena, há-de encontrar-me a cantar: “O Amor venceu! O Amor venceu! O Amor venceu!”





- FIM -








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